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Há meio século, 1ª versão do “vale da celulose” virava gigantesco fracasso

Por Neri Kaspary

Os investimentos bilionários já concretizados e os projetos que estão em andamento ou ainda em estudos não deixam dúvidas de que o chamado “vale da celulose” é um grande sucesso do ponto de vista econômico em Mato Grosso do sul.

Porém, esse sucesso de agora foi precedido por um gigantesco fracasso econômico, ambiental e social na mesma região em que atualmente estão as “infindáveis” plantações de eucaliptos. Meio milhão de hectares de eucaliptos e pinus foram parcialmente consumidos pelas formigas e pelo fogo nos anos 70, 80 e 90 do século passado.

Boa parte daquilo que sobrou foi transformado em carvão para abastecer siderúrgicas mineiras. Estas carvoarias, por sua vez, deram fama mundial a Mato Grosso do Sul por conta das condições degradantes às quais eram submetidos os trabalhadores à época, muitos deles nordestinos que vinham em busca de uma vida melhor.


Imprensa do mundo inteiro deu destaque às condições degradantes de trabalho

Repórteres de TVs, jornais e revistas do mundo inteiro visitavam a região para denunciar a exploração do trabalho infantil e de adultos. À época, parou-se até de falar em trabalho análogo à escravidão e passou-se a denunciar o retorno à escravidão, que havia sido abolida no país um século antes.

No período, um advogado, chamado João Alfredo Danieze, ganhou notoriedade por defender juridicamente produtores de carvão. Anos depois, em 2020, já em meio ao novo ciclo, foi eleito prefeito de Ribas do Rio Pardo pelo PSOL. Atualmente é do PT, único prefeito de partido de esquerda no Estado.

Em meados dos anos 90, dezenas de caminhões se aglomeravam em postos de gasolina de Ribas do Rio Pardo e Água Clara para transportar este carvão para Minas Gerais, tamanha a quantidade de carvoarias que existiam na região.

O Ministério Público do Trabalho chegava a lotar ônibus inteiros para “repatriar” trabalhadores nordestinos resgatados das carvoarias e que não tinham condições de retornar por conta própria para seus estados.

INCENTIVOS FISCAIS

Por conta de incentivos fiscais que foram oferecidos entre os anos de 1966 e 1988, cerca de 500 mil hectares de eucaliptos e pinus foram plantados na região de Ribas do Rio Pardo Água Clara e Três Lagoas. Para efeito de comparação, hoje existem 1,5 milhão de hectares de eucaliptos na mesma região.

Segundo Benedito Mário Lázaro, da Reflore, entidade que congrega os produtores de eucaliptos no Estado, a previsão era de que três indústrias de celulose se instalassem em Ribas, Água Clara e Três Lagoas. Juntas, produziriam em torno de 400 mil toneladas de celulose por ano, lembra.

Porém, por falta de infraestrutura e por conta de uma série de outros fatores da época, nenhuma delas saiu do papel. A BR-262, principal da região e que até o fim do ano deve ser privatizada, teve o asfaltamento entre Campo Grande e Três Lagoas concluído somente em 1987. “Se hoje a locomoção naquelas terras arenosas ainda é difícil, imagina então naquela época”, comenta Dito Mário, como é mais conhecido o diretor da Reflore.

Além disso, lembra ele, o fogo naquela época era um problema tão intenso quanto é atualmente em períodos de estiagem. E, sem estrutura para combate, os incêndios  destruíram milhares e milhares de hectares de eucaliptos ao longo daqueles anos, explica. Quanto a floresta atingida já tinha se desenvolvido, aquilo que restava virava carvão.

E, além disso, tinha o problema das formigas, relembra Dito Mário. “Durante muitos anos, era comum essa região dos 500 mil hectares ser chamada de maior formigueiro do mundo”. Ainda hoje as formigas são um grande inimigo das florestas plantadas, mas os formicidas são mais eficazes e existe um trabalho permanente para o combate dessa praga, segundo ele.

FRAUDES

Os incentivos fiscais ao reflorestamento consistiam em uma pessoa física ou jurídica abater de sua renda tributável ou do imposto de renda a pagar, respectivamente, parcelas que seriam destinadas a projetos de reflorestamento.

Estes projetos poderiam pertencer à própria pessoa optante do desconto do imposto de renda ou serem projetos de propriedade de terceiros, dos quais o contribuinte recebia títulos de participação (como o Certificado de Participação em Reflorestamento). Porém, lembra Dito, nem tudo aquilo que era descontado era efetivamente revertido em plantio ou manutenção das florestas.

“Então, por ser dinheiro fácil, muitos investidores, inclusive de grandes empresas e bancos, investiam e não tomavam o devido cuidado”, explica Dito. Daquele tempo só restou um único produtor de eucaliptos aqui no estado, diz ele. “É família Ramirez, que ajudou a cria a Reflore e que há meio século produz eucaliptos nas mesmas terras”, garante.

Em todo o país, a área de reflorestamento saltou de quase 500 mil hectares, em 1964, para 5,9 milhões de hectares em 1984. A estimativa é de que tenham sido concedidos US$ 7 bilhões (a preços de dezembro de 1992) em incentivos em todo o país.

Com esse dinheiro deveriam ter sido plantados 6,2 milhões de hectares, o que não chegou a acontecer, o que evidencia a existência de uma série de fraudes.

E em meio ao fogo, formigas e ao trabalho ifantil e escravo, ainda surgiu a disputa pela posse das terras, já que elas estava literalmente abandonadas. Parte delas foi alvo de grileiros e outra parte foi invadida por famílias sem-terra.

Após uma série de invasões e anos sob lonas, em 1997 o Incra loteou parte da fazenda Mutum e assentou 340 famílias em meio às terras arenosas de Ribas do Rio Pardo. A principal fonte de sustento destas famílias até hoje é a produção de leite, mas boa parcela dos lotes voltou a ser destinada ao plantio de eucaliptos.

Depois, também em Ribas do Rio Pardo, mais 419 famílias foram assentadas no assentamento Avaré, que tem as mesmas características de terra arenosa e inadequada para agricultura.

DO FRACASSO AO SUCESSO

Depois daquela frustração da primeira experiência do “vale da celulose”, em 2009 finalmente começou a funcionar a primeira fábrica de celulose, que hoje pertence à Suzano, em Três Lagoas. Depois, em 2012 entrou em funcionamento a unidade da Eldorado e a própria Suzano ativou  a segunda unidade, na mesma cidade.

Em 21 de julho deste ano, após investimento de R$ 22 bilhões, a Suzano ativou outra fábrica em Ribas do Rio Pardo, com capacidade para produzir 2,55 milhões de toneladas por ano. Dias antes, a chilena Arauco começou a montar uma fábrica em Inocência, que a partir de 2028 deve produzir outros 2,5 milhões de toneladas por ano. Ela pretende duplicar a produção e os investimentos devem passar dos R$ 30 bilhões.

Em Água Clara estão em andamento os estudos para instalação de uma unidade da Bracell, que deve produzir outros 2,8 milhões de toneladas por ano. São mais 25 bilhões em investimentos. Atualmente a empresa já cultiva milhares de hectares de eucaliptos no Estado. A industrialização é feita em São Paulo.

E para melhorar a infraestrutura de transporte deste vale da celulose, o governo estadual conseguiu nesta semana a concessão de cerca de 500 quilômetros de rodovias federais. Juntamente com a MS 040, os trechos da BR-262 e da 267 serão concedidos à iniciativa privada, que terá de investir em torno de R$ 9 bilhões em algumas melhorias e em troca disso poderá cobrar pedágio ao longo dos 870 quilômetros de estradas neste chamado “vale da celulose”.

Tudo isso mostra, segundo Dito Mário, que não existe mais a menor possibilidade de o fracasso de décadas passadas voltar a se instalar na região. “Hoje o setor gera 70 mil empregos. O hectare da terra, que em 2009 estava em R$ 1,8 mil, chega a R$ 35 mil, apesar de ser uma terra arenosa”

Entre as explicações para este boom, segundo ele, é o crescimento da demanda mundial por celulose e as condições climáticas adequadas desta região à produção de eucaliptos. “Além disso, as terras por aqui ainda são bem mais baratas que em outras regiões, por isso estes investidores estão vindo em peso para cá”, explica.

correiodoestado.com.br

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